sexta-feira, 16 de julho de 2010

A Última Aleivosia

               
 
               
                Era mestre em desculpas, todos os dias ao chegar atrasada era capaz de inventar que caiu no bueiro de uma rua próxima, o ônibus quebrou três vezes, esqueceu o cartão de ponto em casa, teve uma diarréia no caminho e para tornar sua ficção mais convincente jogava-se na lama, rasgava partes da calça e chegava ao ponto de esfolar-se em qualquer local propositalmente. Com o tempo os atrasos já não aconteciam e foram substituídos por faltas consecutivas. As desculpas não mudavam: o amigo suicidou-se, a tia faleceu, o pai teve um derrame, a mãe fugiu, um raio queimou sua cabeça. E o inacreditável sempre acontecia: não tinha santo capaz de duvidar.
                Um dia decidiu fazer uma lista de quantas pessoas havia matado ficticiamente em um período de um ano e percebeu que já não tinha mais álibis para sustentar suas desculpas. Fatigada com suas infinitas mentiras e falsos assassinatos decidira dar um final aquela situação. Pegou seu celular e enviou um torpedo para todos da empresa. “Hoje não poderei comparecer a empresa, pois terei que ir ao meu funeral.”

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Missão Cumprida



A madureza sabe o preço exato
dos amores, dos ócios, dos quebrantos,
e nada pode contra sua ciência
e nem contra si mesma. O agudo olfato,
o agudo olhar, a mão, livre de encantos,
se destroem no sonho da existência.

A ingaia ciência - Carlos Drummond de Andrade

Acordaram e não sabiam mais sobre os seus sentimentos, um misto de desesperança, comodismo e uma preguiça inexplicável de um recomeço.  Olharam-se e não fingiram mais abraços, nem beijos e muito menos discursaram sobre como era bom estar ali. Ele levantou e vestiu a primeira blusa que apareceu na frente e ela continuou deitada, olhou para o teto e agradeceu ao deus de gesso por ter tirado o marido da cama. Ele perguntou se ela não iria levantar e ela sem resposta continuou fitando o teto do quarto que um dia testemunhou as mais ardentes carícias de um casal apaixonado. Ele se despediu, disse para ela ficar bem e se por acaso precisasse de alguma coisa que o procurasse, pois ele sempre estaria a sua espera. Ela permaneceu muda, virou de lado na cama e abriu o livro de cabeceira na página 127 da obra mais recente de Charles Gabriel: “Adeus, companheiro!”.