quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Carta para o meu Pai


Foto de Claudia Sofia Moreira


(...)
“Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas , que sobem.”

RESÍDUO (Carlos Drummond de Andrade)



Sempre critiquei esse constante retorno às épocas festivas – natal, ano novo, aniversários. Como se a vida variasse nesses ciclos e francamente nunca soube reparar um sentido lógico e nem mesmo uma transformação significativa. Mas nesse final de ano algo mudou aqui dentro, pois você partiu para sempre no ultimo mês e eu fiquei com a sensação que 2014 abriria com um gosto de vazio e assim foi. Quem dera poder passar novamente uma virada de ano com você e prestigiar seu riso de homem menino, quem dera  poder ouvir suas aventuras loucas e duvidar que alguém pudesse ter vivido aquilo. Ah aquela vida alienada e ingênua agora me faz falta, muita falta! Eu pensei que tinha uma migalha de fé em outras possibilidades de continuação de vida, mas  tudo o que me lembro é de terem colocado teu corpo naquele túmulo de concreto e terem lacrado – uma amostra da nossa insignificância. Sinto-me sem chão, sem fé e com uma decepção pessoal enorme. Sabe pai, eu sempre quis transformar o mundo, qualificava-me capaz disso, considerava-me potente para lutar pelo bem coletivo, mas quando você se foi compreendi minha alienação e minha fraude. Eu nunca lutei por você, eu nunca fui atrás para saber a causa de sua vida ter sido assim, porque de tanta solidão e isolamento. Compreendi então que eu nunca tentei transformar o mundo do homem que me trouxe nessa orbe azul. Nós humanos somos muitos prepotentes, arrogantes e egoístas (alguns de nós, pois sei que tem muita gente melhor do que eu por aí). Como pude acreditar que minhas idéias reverberariam para o coletivo de forma benéfica?  O sistema arrancou você de mim (ou será que fomos nós que nos perdemos)?  Essa doença maldita está no ar contaminado pela indústria, na comida inserida por bilhões de venenos e manipulação genética, nas drogas legalizadas,  na água contaminada pelas mineradoras e pela agroindústria e pior pelo nosso consumo irracional e nosso descarte irresponsável. É eu ainda sou carregada de argumentos, ainda culpo o externo, ainda culpo o outro coletivo que financia a própria morte do planeta, mas também sei que estamos dentro dele e estamos nos envenenando a cada segundo.  Eu prometo que vou mudar radicalmente e fazer das minhas palavras uma munição de vingança e ação. Se a vida é um prêmio único e sem direito a repetição vou fazer o melhor que eu puder começando pelo  meu universo ao redor e se eu conseguir quem sabe eu volte a falar do mundo. Obrigada por ter me plantado aqui e perdão por eu não ter feito nada ainda para fazer essa existência valer à pena.


(...)

“Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte de escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob ti mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.”

RESÍDUO (Carlos Drummond de Andrade)