segunda-feira, 28 de julho de 2014

v a n g o g h i n i a n a │ Parte I

Colagem sobre Vincent van Gogh │ LISA ALVES

Eram sonhos amarelos,
a depressão escorria pelas paredes,
as janelas eram cobertas por uma espécime de lodo quente...

Ela pedia para eu ler  Notas do Subsolo
e eu teimava em descrever meus sonhos no bloco de contas.
Eu dizia: “Eram sonhos amarelos...”
e Ela perguntava: “Esse é o caderno de contas?”
Aborrecida eu fechava o bloco e batia a porta na cara dela e mesmo assim mais tarde
nos descobríamos no Café para ter mais uma DEÉRRE.

Enquanto ela discorria sobre minhas péssimas atitudes eu tomava um Cabernet e pensava como eu não entendia nada de vinhos e que talvez um dia eu pudesse fazer um daqueles cursos inúteis de degustação para me ostentar para um bando de gente do mesmo modo inútil que também não entende coisa nenhuma de vinhos.

Ela perguntava sobre o meu silêncio  e eu respondia "Vinhos!"
Também acho que você já bebeu demais!” – indagava e eu a encarava ao estilo blasé e retrucava: “Abusada!” e ela ria como se eu tivesse dito Você é mais brilhante que Sírius!”

Ela era definitivamente intuitiva,
sentia o aroma do insucesso de longe e
me dizia friamente: “Você não nasceu para fazer o que deseja.”

Eu morria em todas as suas intuições e renascer era cada dia mais complexo.

Você têm esperança? (eu perguntava)
Eu já esperei o suficiente! (ela respondia)

Sempre fui egoísta demais para repartir o meu espaço/tempo e todas as vezes que ela sugeria para morarmos juntas eu a lembrava sobre minhas velhas manias noturnas de ouvir rock e minha compulsão por limpeza.

Você é uma chata!
 (ela rememorava)
E a novidade?
 (eu replicava e baixava o aro dos meus óculos imitando um dos oito maiores clichês do cinema)

 Só não compreendia o que levava eu sempre pagar a conta.

Por que a conta só vem para mim?
(questionei o garçom)
Perdão, mas não é óbvio?
 (levantou os ombros e saiu murmurando: “Só loucos, só loucos!”)

Na mesa ao lado três adolescentes "riam-se de mim" (como diria Pessoa) – outra cena inclusa entre as oito maiores encenações clichês do cinema



sábado, 12 de julho de 2014

Recados para a Segunda Inquilina

Foto: Murad Haussmann


Meu coração é derivado da gênese milenar de um buraco negro. Depois da primeira explosão surge a matéria escura e permaneço palpável entre quarks e fragmentos de cristais. Até depois do fim da última substância química sou misturada com a eliminação e torno-me a anti da anti matéria.

Não decifro o mundo como se ele fosse uma questão exposta em um jogo de desafios. Tudo o que assimilo são impressões – registros de um grão de areia no Saara pendurado em seu cachos, a areia de sua boca cursando minha língua, o sal do seu corpo invadindo os meus poros.

Amanhã abafo a razão e faço tudo ao contrário – até o meu Sim vestirá os trajes de Nãos. E você compreenderá que a guerra nunca esteve lá fora, a guerra comia e bebia ao seu lado, a guerra comia suas partes íntimas e depois acendia um K2 para aliviar sua retaguarda.

Hoje fumo e amanhã invento campanhas contra o tabaco. Incoerência? Pensa isso por não notar a matiz escura nos pulmões, por não tratar o enfisema e nunca ter purificado os lenços sujos de sangue. Eu vi pessoas morrerem depois de uma vida de amor e o medo era o mesmo dos desgraçados. Todos nós morreremos com alguma dúvida – a entrada e a saída são sempre solitárias, só o caminho é uma questão de escolha (Será?).

Ontem você lia Brecht e hoje não consegue separar o ansiolítico da anfetamina. E eu odeio tudo o que nasce de você, tudo o que brota da sua mente, todas as suas velhas manias. Contudo não consigo me livrar de sua figura, de suas novas rugas e dos fios brancos apresentados todos os dias no espelho.

O que faremos depois desse Nada? Vou resumir nossa biografia em um cartão postal personalizado – nossa foto com cinco anos de idade depois do resgate. Sei que depois daquele acidente nos tornamos ambiexistentes – capazes de transitar entre o Céu e o Inferno, entre Tudo e o Nada.

Carrego você aqui dentro, em todas as pequenas coincidências, no cisco de minha unha e não sei se lanço para fora ou mastigo a sua existência para que mais uma vez duas coisas se tornem outra coisa ou simplesmente sejam eliminadas no período de fusão.



Obs. Quando despertar não esqueça o saco de pães aberto e deposite água para os gatos, da última vez que você ficou topei com a casa toda aberta e o gato mais novo doente e desidratado. Posso até partilhar o meu corpo com você, mas tenha a dignidade de zelar da casa na minha ausência.