sábado, 14 de novembro de 2015

Chuva de Aqueronte






“Aquele rio jamais se abre aos peixes.”
João Cabral de Melo Neto


DESCERAM
 do   C É U,
fluíram pelo concreto,
 atacaram as maiores torres,
 beijaram as estruturas dos prédios,
submergiram os carros,
 desidrataram o mato,  
picharam as árvores,
 sugaram os peixes,
desmaterializaram os bravos,
 endureceram o coração das crianças,
 uniformizaram os imaturos e sangraram o peito das fêmeas.

Indaguei sobre suas identidades e eles
se admiraram – exibiram placas (suas credenciais) e
depois cursaram o meu corpo com lâminas afiadas.

Zombaram
como
hienas,
treparam
como cavalos,
ruminaram
feito Molochs e
disseram que eram demônios brotados da alma humana.

E eu que não possuo alma (tão raro saudade)
fechei os olhos, respirei três vezes até que o cheiro
do último Diabo fosse embora e arrastasse consigo todo sinal de morte.

E eles cantavam:
¯¯Lá fora nada sobrou – nem homem, nem mulher e nem bicho sagrado. ¯¯

Lembro como se fosse hoje da primeira chuva de 2050: “Chuva de Aqueronte” cobriu as cidades com um véu de morte, emudeceu o canto, infiltrou no solo, contaminou o magma e o que era para ser benção volveu-se em passagem para o meu barco sobrecarregado de mortos.


Chuva de cinzas,
chuva estéril,
chuva da desmaterialização,
chuva do infortúnio.


Meu nome é Deserto e nós somos muitos.