segunda-feira, 26 de outubro de 2009

A Metamorfose de H.C.


Imagem e texto: Lisa Alves

A louça suja e empilhada fazia aniversário de quinze dias. A cozinha exalava um odor de gordura e comida estragada. O quarto possuía uma nuvem cinza de fumaça produzida pelas centenas de cigarros fumados por H. C. A jovem estava em uma fase desligada. Desligara-se da vida, afundara-se em uma reclusão de si mesma. E isso exigia o esquecimento do Eu, para dar lugar ao vazio de ser apenas existência. Tudo o que via era ausência – a vida tornara-se negra.


Perambulava de um lado para outro, à espera de alguém que se foi e não tinha previsão de volta. Propusera-se a isso, sabia que a solidão viria desde o momento em que decidira descumprir uma promessa e jogar fora a companhia de quem a teria amado de verdade. O apartamento era pequeno, mal cabiam dois colchões e um velho sofá doado pela vizinha do apartamento ao lado; e, isso, impossibilitava de se esquecer dos momentos felizes cicatrizados na memória daquele lugar. A última briga foi capaz de destruir todas as suas causas e pedir perdão para que o namorado retornasse, parecia mais complicado do que se oferecer à rotina anual de punição. A solução estava conservada na mesa ao lado: alguns sedativos, seringas e anestésicos ilícitos obtidos na esquina com o fornecedor que lavava os carros ou quem sabe poderia optar por mais alguns cortes. Sabia que todos os seus artifícios de autoflagelo eram bem sucedidos, pois, ao final a morte não surgia e as bajulações adentravam pela porta – aqueles com ligações consanguíneas sentiam remorso e passavam uma temporada tentando desculpar-se pelo abandono, já que mais tarde sabiam que o rapaz retornaria e cumpriria a missão de viver ao lado daquela menina de cortes superficiais, vinda de um mundo onde jamais a família faria parte.

Mas naquele dia tudo foi desigual: ela clamou pela morte, perfurou seus pulsos, raspou todos os pêlos do corpo e ninguém bateu à porta. Naquele instante, parecia que nem o namorado e muito menos seus familiares sentiriam sua falta. Olhou-se no espelho, (viu sua imagem) deprimente, não se reconheceu e sabia que assim ninguém a reconheceria. Deitou-se nua no chão da sala, tocou-se para ter fidúcia que já não era mais a mesma e cerrou os olhos. Necessitava sentir-se, carecia perfurar-se, devia encontrar H. C. dentro de si. O sangue tingia aos poucos todo o corpo e ela conseguia perceber o resto de sua existência indo embora. Não era dor o que sentia e sim uma fraqueza impossível de vencer. Ouviu alguém invocar seu nome: não era uma voz conhecida, abriu os olhos e notou a presença de duas asas negras. Sem força e clareza para compreender teve seu corpo erguido até o sofá, o ser a sua frente explicou a necessidade de vê-la mudar, de estar ali naquela complexa libertação do casulo. O monólogo foi longo e durou o tempo necessário da transição de H.C.        

Meses depois o namorado regressou, abriu a porta do apartamento e percebeu uma quantidade extensiva de cabelos por todo o local. Chamou por H. C., mas ninguém respondeu, explorou o miúdo local e nada da namorada. Até que um graúdo recado na parede, registrado com sangue, fisgou a sua atenção: A manequim ao lado foi o que restou de mim.
 

terça-feira, 13 de outubro de 2009

O Surto de Rita


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Estava escuro e nem mesmo as luzes do lado de fora eram capazes de iluminar o grande apartamento situado em uma região selvagem de São Paulo. Macacos e cães atiravam para todo o lado, baratas se reuniam para escrever manifestos contra a ocupação marginal na rede esgoto. Corujas palestravam sobre os bens causados pela cannabis. E os gatos inauguravam o 13º. Deposito de objetos roubados.
Rita, ainda não era selvagem, embora fosse adepta de atos de consumismo sem controle. O apartamento era repleto de objetos sem um significado particular, na verdade os significados vinham dos comerciais, da propaganda boca a boca e isso fazia de Rita uma colecionadora de tudo aquilo que os outros já tinham ou desejavam possuir. Quando os animais civilizados reuniam-se ali, ficavam admirados com a quantidade de coisas sem sentido (todos desejavam experimentar um pouco): mp24, TV com controle mental, computador com download materializador e mais uma quantidade de inovações pertencentes a ratazana. Sim, Rita é de uma espécie de ratos doutrinados nos melhores laboratórios da Nova Ordem Animal. Ela como todos de sua espécie passaram por todos os testes impostos pela NOA e hoje solta no mundo aprendeu a criar sua própria gaiola decorada de acordo com as regras de seus adestradores.
Apesar da vida pacata de ratazana, Rita não estava bem. Na realidade já havia algum tempo que ela pressentia algo estranho em torno de sua existência. Não sentia compaixão pelos animais desfavorecidos, não sentia prazer ao ver os campos orvalhados, não compartilhava sua renda jogada fora nos bolsos do mercado e nem mesmo conseguia contar em suas malditas patas quantos amigos possuía (sobravam dedos). Anos e anos dizia bom dia apenas para a outra ratazana do telejornal da manhã, pois do outro lado da tela era impossível alguém proporcionar-lhe algum desconforto.
O gosto do vazio gerou um câncer tecnológico em Rita - e informação sobre a cura não estava a venda no mercado formal. Na internet, nada. Na TV, impossível. Nos Livros, já não existiam. Na farmácia, só com autorização da NOA. Na NOA, um encaminhamento para o laboratório:
“Consumidora impotente para o sistema, gentileza conduzi-la para o abate.”
Texto: Lisa Alves

terça-feira, 6 de outubro de 2009

O Compasso

Deus criou a Terra
na aula de geometria.
Com um compasso
desenhou uma esfera.
E com um escarro
jogou-lhe a vida.
Imagem e texto: Lisa Alves