domingo, 1 de agosto de 2010

A Cidade dos Sonhos Errados



"Um mapa mundi que não inclua a utopia,
não é digno de consulta, pois deixa de fora as terras a
que a humanidade está sempre apontando."
 Oscar Wilde


O relógio funciona graças à precisão mecânica fabricada
por alguém fora dele e invisível a quem o porta: o relojoeiro.
Assim, na opinião de Newton, seria o Universo.
Na de Smith, a vida social regida por interesses econômicos.
A diferença é que o Deus Relojoeiro de Newton é chamado de Mão Invisível por Smith.
Segundo este, o egoísmo de cada um, guiado pela Mão Invisível, promoveria o bem de todos…
Frei Beto


Sonho enquanto caminho pelas ruas decompostas entre coisas e pessoas. Sinto o oxigênio penetrando minhas narinas e compreendo o quanto a urbanidade estragou a pureza de todas as substâncias – ao respirar percebo que sou invadida por fábricas, caminhões, cigarros e todos os brindes gratuitos que a respiração proporciona. Caminhar é pesado – é como se eu carregasse um fardo maior que eu mesma. É como se o mundo tivesse em minhas costas e nada eu pudesse fazer ou questionar. Pertencer ao mundo é arriscado – todo o seu caminho, todas as suas escolhas refletem dentro dele e por isso ele pesa tanto (apenas para lembrá-lo da sua responsabilidade coletiva). Uma senhora pergunta sobre as horas e digo que não posso informar, pois tudo isso não passa de um sonho errado e nos sonhos errados as horas não fazem qualquer diferença. Nos sonhos errados o tempo de cada ser não é acatado – as horas são imposições, as horas servem para a criação e venda de coisas e seres existentes. E naquele sonho errado eu sabia ou apenas admitia para mim mesma que a senhora em questão havia tirado uma folga do relógio. Mesmo assim ela ficou agradecida e como gesto de sua gratidão apontou com o dedo indicador a saída daquele mundo. Decidi não seguir sua coordenada e retornei pelo mesmo caminho. Mas a obviedade dos sonhos errados manifestou-se naquele momento: a paisagem carregada de pessoas e coisas não era mais a mesma – no lugar apenas um deserto e no seu centro uma árvore gigantesca e um letreiro com os seguintes dizeres: Eu sou a árvore da vida. Descanse em minha sombra e decore os arredores! Não fiquei deslumbrada, não sou tão inocente ao ponto de acreditar que as coisas e pessoas permanecem sempre da mesma forma. As Cidades dos Sonhos Errados crescem mais rápido do que um feto em gestação e morrem antes mesmo da puberdade.
Sentei-me a sombra da árvore e comecei a imaginar um mundo melhor - um mundo que comparando com aquele seria o ideal de se viver, sem barulho de usina e sem o tic-tac do relógio. A paisagem era realmente bela, minha decoração transformava-se a cada passo em um paraíso digno da aspiração de ambientalistas e até mesmo de Salvador Dali. Meu sonho errado tornara-se tão certo para mim que a principio não notei que não havia nenhum Adão e Eva por ali e muito menos seus descendentes. Esse era meu mundo solo e não havia platéia e muito menos personagens para interagirem e prestigiarem meu admirável universo, minha utopia terrestre, meu mundo ideal. E com o tempo ele foi se desfazendo – eu  precisava de conflitos, eu precisava de ter algo para lutar contra, eu precisava de paixões e desilusões, eu precisava das horas, do cartão de ponto, da carteira assinada, das revoluções, da embriaguês, da obrigação. Sim, eu precisava das coisas e das pessoas. E foi então que tudo se dissolveu e o relógio finalmente despertou. Seis horas da manhã, o sonho acabou...

7 comentários:

  1. Ma-ra-vi-lha! Abração. paz e bem.

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  2. A utopia termina nos horários que a humanidade desperta.

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  3. a melhor parte é sobre a insignificância do tempo na cidade dos sonhos errados. vc tem total razão!

    beijos!

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  4. Este é o ponto (não do relógio) minha cara Alice: Movimento. Não há utopia, ou paraíso, ou nirvana, ou silêncio sem movimento. Porque há sempre o Ser, e não o Nada. E isso foi uma escolha (?) muito antiga e que definiu as regras para absolutamente tudo. Mesmo para as utopias, mesmo para quaisquer leis de eterno retorno... Não se retorna ao ponto antes do Sim, porque o Não e toda sua corja de negações precisam se opor a algo. E a oposição (e os sonhos, e os caminhos, e as coisas e as pessoas) é movimento. E movimento é vida. Vida neste plano de existência e realidade, por certo, mas é aqui que os sonhos (errados ou não) se manifestam e adquirem sua matéria-prima onírica...

    Belo texto. Obrigado por compartilhar teus sonhos.

    Beijo do Eulálio.

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  5. Simplismente demais... É tão impactante que vai além da alma de quem lê.

    Abraços Imundos.

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  6. Lindoo.. Dá pra ver a profundidade da tua alma.

    Belo texto.
    Beijoos

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  7. Te publiquei no meu facebook, faço com todas as leituras que me tocam.

    Beijos.

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