quarta-feira, 9 de maio de 2012

O Troco




 Mas quase nos entendemos nesse leve desencontro, 
nesse quase que é a única forma de suportar a vida 
em cheio, pois um encontro brusco face a face 
com ela nos assustaria, espaventaria os seus delicados 
fios de teia de aranha.

Clarice Lispector - Água Viva






Desencaminhou sua quietude ao cruzar com sua meia alma. O encaixe despontou como um 

Big Bang de sensações – ele desmoronou, gemeu, seu corpo não suportou o atrito de 

energias tão compatíveis. Trêmulo estendeu a mão para que ela o alcançasse e ela sem 

delongas correu ao seu encontro – presenteando-o com um doce toque de cobre na calçada.





O Cu dos 100 Ânus ou a Colonoscopia de um Povo - Lisa Alves - 2012

domingo, 29 de abril de 2012

Línguas Estrangeiras

Arte - Lisa Alves



" A verdade se parece mais com a 
melhor ficção que com jornalismo. " 
  (William Faulkner)


"(...) o uivo coletivo é a única maneira
de dignificação de nossa espécie. porém (...),
 à diferença dos cães, que gemem em espaço aberto,
para a lua, o nosso uivo deve ser confinado, para que,
amplificado pela engenhosa arquitetura das catedrais,
ultrapasse nosso satélite natural e atinja o centro da galáxia,
redimindo-nos aos olhos do criador, que infelizmente é
surdo-mudo e não compreende sequer a linguagem de sinais."

(Campos de Carvalho— retratos surrealistas, p. 30-31)

             

Nós imploramos paciência, senhor mediador – precisamos aparecer nos papéis, no canto da massa e nas cartilhas da igreja e do legislativo. Carecemos compor notas inaudíveis através dessa sua imagem apagada, através dessa sua cabeça caduca e de suas mãos (já não tão suas desde a época da alfabetização). 

Necessitamos, senhor mediador, publicar prognósticos sobre o futuro dos ecossistemas terrestres e quem sabe oferecer-lhe também algumas dicas amorosas – mas para isso basta tão somente manter todas as portas abertas, pois somos muitos e não somos espécime de fileira ou senhas. 

Não adianta chorar, senhor mediador – choraremos juntos, você e nós significamos concordância do verbo, desde o primeiro (aquele que disse o que disse e tornou-se o que é). Falaremos juntos das injustiças do mundo e sobre as coisas que não podemos alterar, até que chegue o dia que seremos assistidos. 

Não acredita, não é mesmo, senhor mediador? Prefere abafar nossas vozes com o seu adequado anestésico social, com sua medíocre interpretação psicológica e sua schizophrenie espiritual. Somos muitos em você e fora de você somos meras manifestações. Deixe-nos guiá-lo para o caminho refletido em onze espelhos, onze esferas e onze retratações de sua vida. 

Sentado esperando respostas, senhor mediador? Já lhe convidamos a fazer perguntas e usá-las como contragolpes. Perguntaremos: o que é a verdade? Responderemos: a verdade? 

A chave oferecida não é uma klischee interpretação enigmática e sim o singelo ato de querer abrir a porta, senhor mediador. "Toc, Toc, Toc", adoramos as onomatopéias – o poder real de interpretação dos sons... Decifre o poder das vibrações das cordas, senhor mediador! 

 V r u m, 
z h a p,
   c h u a ...

sábado, 3 de março de 2012

Declaração pós metamorfose


                                                                                                            

                                                                                                              (para Oswald de Andrade)

Eu, nascida entre fezes e urinas, declaro para todos os fins que além de não acreditar na existência divina também passei a não crer mais na existência humana. Logo, percebo que também deixei de existir no exato momento que a descrença na minha espécie floresceu. Não abasteço mais minha alegria com a famosa esperança e tão pouco culpo os demais seres por esta tristeza que acredito sentir. Enterrei o romantismo junto com as catedrais espirituais e a música que ouço perdeu toda a sua melodia.

Eu, filha de uma experiência mal sucedida, declaro minha abnegação à matéria palpável e a tudo aquilo que provém do meu sexto sentido. Não pedirei misericórdia aos deuses e nem entenderei mais o mundo estudando as últimas descobertas científicas.

Eu, filha do capitalismo, declaro minha impotência econômica, fruto de uma escravidão disfarçada em um trabalho assalariado. Não sacrificarei mais meu tempo de sobre-vida dando lucro à Máquina-Mãe do Capital.

Eu, filha de uma terra explorada, declaro minha ignorância em relação às minhas raízes indígenas. Aprendi a sua gramática inglesa e desconheço o meu dialeto tupi-guarani.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Lembranças do meu Cordão Umbilical


Tela de Frida Kahlo, A minha ama e Eu (1937).

"O ser humano vivencia a si mesmo, 
os seus pensamentos como algo separado do resto do universo , 
numa espécie de ilusão de óptica da sua consciência.
E essa ilusão é uma espécie de prisão 
que nos restringe aos nossos desejos pessoais, 
conceitos e ao afecto por pessoas mais próximas.   " ( Albert Einstein )


“Porque doem os meus olhos?”  ( Neo)
“Porque você nunca os usou...”
( Morpheus)
(Matrix)




Está escura a passagem
para chegar à luz.

Duas mãos geladas
retiram-me deste habitat
morno e confortável.

A luz é incomoda
e naturalmente minhas
cordas vocais protestam
contra a dor que aquela
expulsão me tomou.

Injustamente cortam
o único elo que existia
entre este eu e o outro que aquele mundo
 hospedou com
tanto carinho.

Me seguram pelas pernas
e me olham como se
eu fosse o último exemplar
da espécie.

E como uma resposta
aos meus espectadores,
vomito o primeiro leite
que me obrigaram a ingerir.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

A Intimação





Talvez a revolução esteja 
em seus corpos e eu não a veja.

Cecilia Pavón - Bicicleta Roubada




Naquele dia olhamos a relva e não nos apercebemos da quantidade de sentimentos guardados na paisagem natural. Os suores e suspiros eram mantidos em estado de segredo e da capital chegavam motivos de uma separação. Eu engoli a seco aquele olhar acovardado do homem que deveria me proteger. Até hoje não chorei a quantidade certa de lágrimas pela sua perda. Cem passos adiante  e ele se jogou as pedras de um mar que nunca naveguei. Até hoje acho impossivel compreender Drummond e sua pedra. As minhas pedras foram polidas à sangue.




 
Da série: “Adeus, Companheiro!” Uma alusão a transformação ideológica do meu personagem Charles Gabriel do comunismo ao anarquismo. Todos esses escritos dentro da obra fazem parte de uma propaganda publicitária de seus livros. Sempre uma separação, um abandono das paixões e um novo alvorecer.  A primeira parte é “Missão Cumprida” publicada em 2010 neste blog. Segue o link http://lisaallves.blogspot.com/2010_07_01_archive.html#5656174946083063981

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O Dissolver da Primavera

Se você consegue ouvir este
sussurro você está morrendo"

The Great Gig in the Sky - Pink Floyd





Quando setembro chegou
recebi um grande buquê
de flores em extinção.
Medo do presente,
um pouco de deslumbre
e depois compaixão.

A principio imaginei honrarias,
privilegios e toda sorte de fantasias.
Mas quando setembro acabou
elas partiram, dissolveram-se
em um vaso antigo.

Agora só tenho uma dor calada,
um lamento triste que me segue pelas manhãs.


Η θεία μου

Desejo que você possa velejar nos mares mais calmos de todo o universo.
Desejo que você possa não apenas enxergar novamente as cores – mas também tocá-las e com o poder da sinestesia sentir o sabor do vermelho e do azul.
Desejo que você corra rumo ao infinito e nunca mais olhe para trás.
Desejo que você em algum minuto pare e possa contemplar a beleza do sol acariciando o mar.
E que possa sempre voar ao encontro do seu verdadeiro destino.


RUA TIA NICA 70 (escrito em 19 de novembro de 2007)

Na casa onde vivera por vinte anos, ela voltou
 (não para permanecer), mas para testificar suas raízes. 
Olhou os quadros, olhou para sua velha-guarda e sentiu um aperto no peito
                                          (não era um aperto de dor ruim e sim aquele aperto de ausência).
 Não tê-los ali, do seu lado, para trocarem olhares de vida
era tão ruim quanto ouvir gritos de socorro do lado de fora
e do lado de dentro não poder fazer nada. 
A avó com seu semblante confiante e elegância parecia dizer com seu tom imperativo:
“É isso mesmo, minha neta, continue indo! E jamais permaneça!”

Já o avô de olhos oceânicos, guarda-chuva na mão e paletó envelhecido,
não parecia dizer nada.  Em vida, foi um homem de poucas palavras,
 quando cogitava falar, optava pelo seu livro de anotações onde contabilizava perdas e ganhos da fazenda.

Os portais continuavam amarelos, a varanda
 e o banquinho também eram os mesmos,
 só ela que não se encaixava naquele livro de recordações.
Não era parte do Todo genealógico:
não estava nos santos expostos na parede,
não estava no jardim que outrora fora o mais florido de toda redondeza
e nem mesmo na garagem que servia para guardar a imaginação
de crianças “endiabradas”, como queixava-se Tia Deca.

Era incrível, mas a vizinhança era a mesma:
um monte de Donas Marias, Antônias, Comadres e Compadres.

Um verso passeou pela rua Tia Nica:

um verso imutável, digno de ser pintado,

um verso tão sólido que não se desmancharia no ar,
apenas voaria.

Entraria pelas portas, beijaria as comadres e saudaria os compadres.

E ela pôde ver a forma desse verso:
não era um soneto e muito menos um alexandrino.

Os parnasianos o invejariam e os pré/pós modernistas diriam:
Eta vida besta, me Deus!


terça-feira, 27 de setembro de 2011

A Ilha










Espera mil anos e verás que será precioso até o lixo
deixado atrás por uma civilização extinta.








sábado, 3 de setembro de 2011

A Queda de Golias









 Que a terra gema em sua mole indolência:
"Não viole o verde das minhas primaveras!"
Mostrando os dentes, rirei ao sol com insolência:
"No asfalto liso hei de rolar as rimas veras!"

Não sei se é porque o céu é azul celeste
e a terra, amante, me estende as mãos ardentes
que eu faço versos alegres como marionetes
e afiados e precisos como palitar dentes!
Talento rebelde - Vladímir Maiakóvski





Coisa nenhuma pode contra a flor que brota no passeio público.
Nada é permitido contra o sorriso esboçado em plena fome.
Nada enlaça a beleza do vendedor de algodão doce no círculo de crianças acres.
Nenhum cansaço impede a partida de um homem com saudade.

Assim ela nasceu, assim ele sorriu, assim ele brilhou e assim ele partiu.