“Aquele rio
jamais se abre aos peixes.”
João Cabral de
Melo Neto
DESCERAM
do
C É U,
fluíram pelo concreto,
atacaram
as maiores torres,
beijaram
as estruturas dos prédios,
submergiram os carros,
desidrataram
o mato,
picharam as árvores,
sugaram
os peixes,
desmaterializaram os bravos,
endureceram
o coração das crianças,
uniformizaram
os imaturos e sangraram o peito das fêmeas.
Indaguei sobre suas identidades e eles
se admiraram – exibiram placas (suas credenciais)
e
depois cursaram o meu corpo com lâminas
afiadas.
Zombaram
como
hienas,
treparam
como cavalos,
ruminaram
feito Molochs e
disseram que eram demônios brotados da
alma humana.
E eu que não possuo
alma (tão raro saudade)
fechei os olhos,
respirei três vezes até que o cheiro
do último Diabo fosse embora e arrastasse consigo todo
sinal de morte.
E eles cantavam:
¯¯Lá fora nada sobrou – nem homem, nem
mulher e nem bicho sagrado. ¯¯
Lembro
como se fosse hoje da primeira chuva de 2050: “Chuva de Aqueronte” cobriu as
cidades com um véu de morte, emudeceu o canto, infiltrou no solo, contaminou o
magma e o que era para ser benção volveu-se em passagem para o meu barco sobrecarregado
de mortos.
Chuva de cinzas,
chuva estéril,
chuva da desmaterialização,
chuva do infortúnio.
Meu nome é Deserto e nós somos muitos.