“Depois
de tantos combates
o
anjo bom matou o anjo mau
e
jogou seu corpo no rio.”
Poema da Purificação – Carlos Drummond
de Andrade
Acordar e ver o quarto tão cinza que
mesmo ao abrir a janela nenhum efeito dos raios solares contribui para diminuir
o efeito do último incêndio. Pela terceira vez ela ameaçara incendiar os livros:
“Pobre tem que trabalhar!”
“Essas escrituras envenenam seus pensamentos.”
“Só os ricos podem se dar ao luxo de ler.”
“A louça está suja.”
“Nenhum homem vai querer casar com você.”
Eu tinha pena dela, também tinha ódio,
às vezes receio, às vezes respeito. Por fim não relutava, pedia licença para Drummond e saía às seis da manhã para procurar emprego. Trabalhei em linhas de
produção, contaminei meu organismo com baterias de celulares e foi ali que
constatei a poesia de Maiakovski: "Grita-se
ao poeta: "Queria te ver numa fábrica! O que? Versos? Pura
bobagem"." Sentia o quanto eram falsas as palavras de minha mãe,
pois nos livros existiam descrições perfeitas da vida lá fora, embora a vida lá
fora não tivesse tempo suficiente para compreender os livros. A vida lá fora
vendera seu tempo, minha mãe vendera sua vida e eu estava prestes a vender
minha alma. Meu emprego era um lugar onde pessoas entravam e saiam a cada
segundo, ninguém permanecia ali por muito tempo, o pagamento era bom, mas como
não havia plano de saúde noventa por cento do salário entrava nos bolsos dos
médicos. Um mês era o suficiente para um cidadão de bem suportar aquilo, eu
fiquei ali por quatro anos. Nos intervalos (quando aconteciam) escrevia para os
meus autores testemunhando a veracidade de seus escritos.
“Querido
Drummond, minha mão também está suja, não a escondo dentro dos meus bolsos,
pois não posso contaminá-los de radiação.”
“Caríssima,
Clarice! Escrevo-lhe com borrões vermelhos de sangue, minhas unhas não suportam
os movimentos repetitivos, as baratas possuem uma vida melhor.”
“Sr.
Gabriel Garcia, a solidão que acompanha essa gente durará centenas de milhares
de anos. Leve-me para Macondo!”
Quatro anos e nenhuma resposta. Na
caixinha do correio apenas propagandas dos mercados e contas a pagar. A vida
ficou mais difícil, eu estava completamente contaminada com as suas doutrinas.
Não havia mais tempo para os livros, chegava cansada, ligava a TV e mastigava
algum alimento fácil. Minha mãe já não era a mesma, até beijava meu rosto, arrumava
meu quarto e limpava a pequena biblioteca. Os livros já não eram mais
perigosos, tornaram-se enfeites na estante da sala. O vazio dentro de mim era
descarado, gritava no meu espelho, tremia as paredes, perturbava os meus
sonhos. Cheguei ao ponto de ter um verdadeiro nojo das palavras escritas,
depois das palavras ditas e por fim fiquei muda. O trabalho tornou-se
desinteressante, antes existiam intervalos, antes eu era a espiã de Clarice,
Drummond e Garcia Marquês, mas agora minha missão tinha terminado. Assim que
fui promovida pedi demissão, não queria mais fazer parte da história daqueles
autores, esse mundo era feio demais, inútil demais, não havia sentido viver na
descrição de uma vida tão penosa.
Voltei para casa e contei a boa nova
para a família, batizaram-me “a louca”, minha mãe trancou os livros caso eu
tivesse a intenção de voltar a lê-los. Ameaçou queimá-los (novamente
tornaram-se perigosos). Disse a ela que não se preocupasse, eu não os queria
mais, não tinha mais curiosidade de conhecer o mundo inventado por eles. Peguei
um fósforo e queimei Drummond. "Morra
triturado por uma pedra denotativa, morra no meio do caminho, morra com as mãos
sujas!" Drummond incendiou todo o resto. Clarice gritava em meus
ouvidos: “Apagai, pois, minha flama,
Deus, porque ela não me serve para viver os dias.”
Eu não tive pena, o mundo precisava de novos autores, o mundo necessitava de uma nova visão.
Eu não tive pena, o mundo precisava de novos autores, o mundo necessitava de uma nova visão.
Lá fora o mundo adormeceu no fogo, eu sabia
que tudo não passava de uma grande ficção.
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