sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A Morte de Carlos Drummond de Andrade


“Depois de tantos combates
o anjo bom matou o anjo mau
e jogou seu corpo no rio.”

Poema da Purificação – Carlos Drummond de Andrade


Acordar e ver o quarto tão cinza que mesmo ao abrir a janela nenhum efeito dos raios solares contribui para diminuir o efeito do último incêndio. Pela terceira vez ela ameaçara incendiar os livros:

“Pobre tem que trabalhar!”
“Essas escrituras envenenam seus pensamentos.”
“Só os ricos podem se dar ao luxo de ler.”
“A louça está suja.”
“Nenhum homem vai querer casar com você.”

Eu tinha pena dela, também tinha ódio, às vezes receio, às vezes respeito. Por fim não relutava, pedia licença para Drummond e saía às seis da manhã para procurar emprego. Trabalhei em linhas de produção, contaminei meu organismo com baterias de celulares e foi ali que constatei a poesia de Maiakovski: "Grita-se ao poeta: "Queria te ver numa fábrica! O que? Versos? Pura bobagem"." Sentia o quanto eram falsas as palavras de minha mãe, pois nos livros existiam descrições perfeitas da vida lá fora, embora a vida lá fora não tivesse tempo suficiente para compreender os livros. A vida lá fora vendera seu tempo, minha mãe vendera sua vida e eu estava prestes a vender minha alma. Meu emprego era um lugar onde pessoas entravam e saiam a cada segundo, ninguém permanecia ali por muito tempo, o pagamento era bom, mas como não havia plano de saúde noventa por cento do salário entrava nos bolsos dos médicos. Um mês era o suficiente para um cidadão de bem suportar aquilo, eu fiquei ali por quatro anos. Nos intervalos (quando aconteciam) escrevia para os meus autores testemunhando a veracidade de seus escritos.

“Querido Drummond, minha mão também está suja, não a escondo dentro dos meus bolsos, pois não posso contaminá-los de radiação.”

“Caríssima, Clarice! Escrevo-lhe com borrões vermelhos de sangue, minhas unhas não suportam os movimentos repetitivos, as baratas possuem uma vida melhor.”

“Sr. Gabriel Garcia, a solidão que acompanha essa gente durará centenas de milhares de anos. Leve-me para Macondo!”

Quatro anos e nenhuma resposta. Na caixinha do correio apenas propagandas dos mercados e contas a pagar. A vida ficou mais difícil, eu estava completamente contaminada com as suas doutrinas. Não havia mais tempo para os livros, chegava cansada, ligava a TV e mastigava algum alimento fácil. Minha mãe já não era a mesma, até beijava meu rosto, arrumava meu quarto e limpava a pequena biblioteca. Os livros já não eram mais perigosos, tornaram-se enfeites na estante da sala. O vazio dentro de mim era descarado, gritava no meu espelho, tremia as paredes, perturbava os meus sonhos. Cheguei ao ponto de ter um verdadeiro nojo das palavras escritas, depois das palavras ditas e por fim fiquei muda. O trabalho tornou-se desinteressante, antes existiam intervalos, antes eu era a espiã de Clarice, Drummond e Garcia Marquês, mas agora minha missão tinha terminado. Assim que fui promovida pedi demissão, não queria mais fazer parte da história daqueles autores, esse mundo era feio demais, inútil demais, não havia sentido viver na descrição de uma vida tão penosa.

Voltei para casa e contei a boa nova para a família, batizaram-me “a louca”, minha mãe trancou os livros caso eu tivesse a intenção de voltar a lê-los. Ameaçou queimá-los (novamente tornaram-se perigosos). Disse a ela que não se preocupasse, eu não os queria mais, não tinha mais curiosidade de conhecer o mundo inventado por eles. Peguei um fósforo e queimei Drummond. "Morra triturado por uma pedra denotativa, morra no meio do caminho, morra com as mãos sujas!" Drummond incendiou todo o resto. Clarice gritava em meus ouvidos: “Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias.” 

Eu não tive pena, o mundo precisava de novos autores, o mundo necessitava de uma nova visão.

Lá fora o mundo adormeceu no fogo, eu sabia que tudo não passava de uma grande ficção.



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