sábado, 12 de julho de 2014

Recados para a Segunda Inquilina

Foto: Murad Haussmann


Meu coração é derivado da gênese milenar de um buraco negro. Depois da primeira explosão surge a matéria escura e permaneço palpável entre quarks e fragmentos de cristais. Até depois do fim da última substância química sou misturada com a eliminação e torno-me a anti da anti matéria.

Não decifro o mundo como se ele fosse uma questão exposta em um jogo de desafios. Tudo o que assimilo são impressões – registros de um grão de areia no Saara pendurado em seu cachos, a areia de sua boca cursando minha língua, o sal do seu corpo invadindo os meus poros.

Amanhã abafo a razão e faço tudo ao contrário – até o meu Sim vestirá os trajes de Nãos. E você compreenderá que a guerra nunca esteve lá fora, a guerra comia e bebia ao seu lado, a guerra comia suas partes íntimas e depois acendia um K2 para aliviar sua retaguarda.

Hoje fumo e amanhã invento campanhas contra o tabaco. Incoerência? Pensa isso por não notar a matiz escura nos pulmões, por não tratar o enfisema e nunca ter purificado os lenços sujos de sangue. Eu vi pessoas morrerem depois de uma vida de amor e o medo era o mesmo dos desgraçados. Todos nós morreremos com alguma dúvida – a entrada e a saída são sempre solitárias, só o caminho é uma questão de escolha (Será?).

Ontem você lia Brecht e hoje não consegue separar o ansiolítico da anfetamina. E eu odeio tudo o que nasce de você, tudo o que brota da sua mente, todas as suas velhas manias. Contudo não consigo me livrar de sua figura, de suas novas rugas e dos fios brancos apresentados todos os dias no espelho.

O que faremos depois desse Nada? Vou resumir nossa biografia em um cartão postal personalizado – nossa foto com cinco anos de idade depois do resgate. Sei que depois daquele acidente nos tornamos ambiexistentes – capazes de transitar entre o Céu e o Inferno, entre Tudo e o Nada.

Carrego você aqui dentro, em todas as pequenas coincidências, no cisco de minha unha e não sei se lanço para fora ou mastigo a sua existência para que mais uma vez duas coisas se tornem outra coisa ou simplesmente sejam eliminadas no período de fusão.



Obs. Quando despertar não esqueça o saco de pães aberto e deposite água para os gatos, da última vez que você ficou topei com a casa toda aberta e o gato mais novo doente e desidratado. Posso até partilhar o meu corpo com você, mas tenha a dignidade de zelar da casa na minha ausência. 

Um comentário:

  1. Interessante isso das coisas que se unem para formar uma outra, ou para serem "eliminadas no período de fusão"... como sempre, você me fez dar uma viajada boa aqui, Lisa =).
    Também fiquei pensando sobre o caminho de alguns, que não há escolha, será solitário, simplesmente. e o solitário não vivencia seu caminho, mas tão mais capaz de "assimilar impressões" que os outros, rasga tantas veias por ele como legado.

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