
Imagem e texto: Lisa Alves
A louça suja e empilhada fazia aniversário de
quinze dias. A cozinha exalava um odor de gordura e comida estragada. O quarto
possuía uma nuvem cinza de fumaça produzida pelas centenas de cigarros fumados
por H. C. A jovem estava em uma fase desligada. Desligara-se da vida,
afundara-se em uma reclusão de si mesma. E isso exigia o esquecimento do Eu,
para dar lugar ao vazio de ser apenas existência. Tudo o que via era ausência –
a vida tornara-se negra.
Perambulava de um lado para outro, à espera de alguém que se foi e não tinha previsão de volta. Propusera-se a isso, sabia que a solidão viria desde o momento em que decidira descumprir uma promessa e jogar fora a companhia de quem a teria amado de verdade. O apartamento era pequeno, mal cabiam dois colchões e um velho sofá doado pela vizinha do apartamento ao lado; e, isso, impossibilitava de se esquecer dos momentos felizes cicatrizados na memória daquele lugar. A última briga foi capaz de destruir todas as suas causas e pedir perdão para que o namorado retornasse, parecia mais complicado do que se oferecer à rotina anual de punição. A solução estava conservada na mesa ao lado: alguns sedativos, seringas e anestésicos ilícitos obtidos na esquina com o fornecedor que lavava os carros ou quem sabe poderia optar por mais alguns cortes. Sabia que todos os seus artifícios de autoflagelo eram bem sucedidos, pois, ao final a morte não surgia e as bajulações adentravam pela porta – aqueles com ligações consanguíneas sentiam remorso e passavam uma temporada tentando desculpar-se pelo abandono, já que mais tarde sabiam que o rapaz retornaria e cumpriria a missão de viver ao lado daquela menina de cortes superficiais, vinda de um mundo onde jamais a família faria parte.
Mas naquele dia tudo foi desigual: ela clamou
pela morte, perfurou seus pulsos, raspou todos os pêlos do corpo e ninguém
bateu à porta. Naquele instante, parecia que nem o namorado e muito menos seus
familiares sentiriam sua falta. Olhou-se no espelho, (viu sua imagem)
deprimente, não se reconheceu e sabia que assim ninguém a reconheceria.
Deitou-se nua no chão da sala, tocou-se para ter fidúcia que já não era mais a
mesma e cerrou os olhos. Necessitava sentir-se, carecia perfurar-se, devia encontrar
H. C. dentro de si. O sangue tingia aos poucos todo o corpo e ela conseguia perceber
o resto de sua existência indo embora. Não era dor o que sentia e sim uma
fraqueza impossível de vencer. Ouviu alguém invocar seu nome: não era uma voz
conhecida, abriu os olhos e notou a presença de duas asas negras. Sem força e clareza
para compreender teve seu corpo erguido até o sofá, o ser a sua frente explicou
a necessidade de vê-la mudar, de estar ali naquela complexa libertação do casulo.
O monólogo foi longo e durou o tempo necessário da transição de H.C.
Meses depois o namorado regressou, abriu a porta do apartamento e percebeu uma quantidade extensiva de cabelos por todo o local. Chamou por H. C., mas ninguém respondeu, explorou o miúdo local e nada da namorada. Até que um graúdo recado na parede, registrado com sangue, fisgou a sua atenção: A manequim ao lado foi o que restou de mim.